Resumo: o texto abaixo é de Antonio Prata e é um exemplo primoroso da grandeza e da simplicidade da crônica. Este gênero maleável, que mimetiza qualquer outro gênero, consegue extrair da aparente simplicidade cotidiana momentos sublimes.
Antonio Prata
Recordação
"Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado", ele disse, me olhando pelo
retrovisor. Fiquei sem reação: tinha pegado o táxi na Nove de Julho, o
trânsito estava ruim, levamos meia hora para percorrer a Faria Lima e
chegar à rua dos Pinheiros, tudo no mais asséptico silêncio, aí, então,
ele me encara pelo espelhinho e, como se fosse a continuação de uma
longa conversa, solta essa: "Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado".
Meu espanto, contudo, não durou muito, pois ele logo emendou: "Nunca vou
esquecer: 1º de junho de 1988. A gente se conheceu num barzinho, lá em
Santos, e dali pra frente nunca ficou um dia sem se falar! Até que cinco
anos atrás... Fazer o que, né? Se Deus quis assim...".
Houve um breve silêncio, enquanto ultrapassávamos um caminhão de lixo e
consegui encaixar um "Sinto muito". "Obrigado. No começo foi complicado,
agora tô me acostumando. Mas sabe que que é mais difícil? Não ter foto
dela." "Cê não tem nenhuma?" "Não, tenho foto, sim, eu até fiz um álbum,
mas não tem foto dela fazendo as coisas dela, entendeu? Que nem: tem
ela no casamento da nossa mais velha, toda arrumada. Mas ela não era
daquele jeito, com penteado, com vestido. Sabe o jeito que eu mais
lembro dela? De avental. Só que toda vez que tinha almoço lá em casa,
festa e alguém aparecia com uma câmera na cozinha, ela tirava correndo o
avental, ia arrumar o cabelo, até ficar de um jeito que não era ela.
Tenho pensado muito nisso aí, das fotos, falo com os passageiros e tal e
descobri que é assim, é do ser humano, mesmo. A pessoa, olha só, a
pessoa trabalha todo dia numa firma, vamos dizer, todo dia ela vai lá e
nunca tira uma foto da portaria, do bebedor, do banheiro, desses lugares
que ela fica o tempo inteiro. Aí, num fim de semana ela vai pra uma
praia qualquer, leva a câmera, o celular e tchuf, tchuf, tchuf. Não faz
sentido, pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida
dela e as coisas que são, não? Tá acompanhando? Não tenho uma foto da
minha esposa no sofá, assistindo novela, mas tem uma dela no jet ski do
meu cunhado, lá na Guarapiranga. Entro aqui na Joaquim?" "Isso."
"Ano passado me deu uma agonia, uma saudade, peguei o álbum, só tinha
aqueles retratos de casório, de viagem, do jet ski, sabe o que eu fiz?
Fui pra Santos. Sei lá, quis voltar naquele bar." "E aí?!" "Aí que o bar
tinha fechado em 94, mas o proprietário, um senhor de idade, ainda
morava no imóvel. Eu expliquei a minha história, ele falou: Entra'. Foi
lá num armário, trouxe uma caixa de sapatos e disse: É tudo foto do bar,
pode escolher uma, leva de recordação'."
Paramos num farol. Ele tirou a carteira do bolso, pegou a foto e me deu:
umas 50 pessoas pelas mesas, mais umas tantas no balcão. "Olha a data
aí no cantinho, embaixo." "1º de junho de 1988?" "Pois é. Quando eu
peguei essa foto e vi a data, nem acreditei, corri o olho pelas mesas,
vendo se achava nós aí no meio, mas não. Todo dia eu olho essa foto e
fico danado, pensando: será que a gente ainda vai chegar ou será que a
gente já foi embora? Vou morrer com essa dúvida. De qualquer forma, taí o
testemunho: foi nesse lugar, nesse dia, tá fazendo 25 anos, hoje. Ali
do lado da banca, tá bom pra você?"
(FOLHA DE SÃO PAULO. 5 jun. 2013 - Cotidiano - Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/112455-recordacao.shtml)