12 de setembro de 2011

O QUE OS JORNAIS NÃO DIZEM SOBRE O ENEM

 Resumo: neste texto comento a distinção entre escolas públicas e privadas motivado pelos jornais de hoje, que noticiam mais um índice do ENEM.

            Sempre que os resultados do ENEM chegam à imprensa dá-se sempre o mesmo: a "educação pública" é achincalhada e seu "inaceitável" fracasso é comparado com a eficiência das escolas privadas, estas sim, um modelo do que deveria ser a educação brasileira. Em meio a tantos números, índices e nomes, noticia-se muito, mas informa-se pouco. Nas entrelinhas ficam algumas impressões para os leitores, dentre elas, a de que o ensino público é ruim por ser público e que o modelo privado (leia-se, pago) é o modelo a ser padronizado, sugerindo que a escola pública deva ser apenas uma benesse do Estado para a massa empobrecida.
            Em comentário no jornal O Globo (de 12/09/2011), Nélio Bizzo (da Faculdade de Educação da USP[1]) fez um importante comentário: "- Você pode avaliar os alunos, mas não pode comparar as escolas porque é uma injustiça com as públicas. Elas não estão preparadas para que seus alunos façam o Enem, enquanto as privadas escolhem os melhores para fazerem as provas".
            De fato, as realidades são tão distintas que é impossível os resultados se aproximarem, pelo menos enquanto o modelo de ensino, em ambos os casos, se mantiver. Para começar, há o fato de muitas particulares "escolherem" os alunos que farão a prova (no limite mínimo de 25%), enquanto nas públicas o índice de participação é maior e não há escolha. Mas isto não é nada. A escola particular no Brasil já promove no plano econômico uma filtragem, pois devido ao valor de uma mensalidade o conjunto de alunos que ali estudam representa uma camada socioeconômica e cultural que ocupa a parte de cima da pirâmide social. Oriundos de famílias das classes altas e médias, estão mais habituados com a rotina escolar e com a cultura letrada, que entra muito cedo em suas vidas.
            A escola pública, por sua vez, promove algo impensável nas particulares, a inclusão de todo e qualquer indivíduo em condições de matricular-se, não importando sua idade, condição financeira, histórico escolar, situação de risco, local de moradia, antecedentes policiais e por aí vai. Tal processo de universalização do ensino, que nos últimos quinze anos tem se aproximado quase da totalidade de seu objetivo (todos alunos nas escolas), é um dos responsáveis por uma série de situações que geram dificuldades para o ambiente escolar. A posição no ranking do MEC não é atributo exclusivo da presença desse grupo de alunos com dificuldade de adaptação ao regime escolar, mas gostaria de insistir na descrição dessa situação para melhor encaminhar a discussão. Também não pretendo me posicionar definitivamente sobre alguns assuntos aqui levantados, uma vez que considero necessário contextualizá-los primeiro para depois ir em busca de suas soluções, quando então torna-se imprescindível marcar posição.
            Há numerosos indivíduos, transformados compulsoriamente em alunos, que não trazem do ambiente de origem o discurso ideologizado do estudo como tábua de salvação para o sucesso social. Somam-se a isto a inabilidade e pouca intimidade de seus responsáveis (nem sempre os pais biológicos) com o universo pedagógico e suas demandas: deveres para casa, pesquisas, práticas de estudo, organização do material escolar, reconhecimento da hierarquia escolar etc. Fatores variados ainda contribuem para que este grupo tenha dificuldades de adaptar-se ao padrão de comportamento que dele se espera, pois o índice de envolvimento com situações de risco (má nutrição, doenças não tratadas, distúrbios neurológicos, drogas, marginalidade, sexualidade precoce, violência doméstica, abuso sexual entre outros) é exponencialmente maior em relação aos demais alunos. Não possuo dados concretos, mas empiricamente arriscaria dizer que este grupo de alunos com dificuldade de adaptação representa algo entre 10 e 20 por cento do total. Parto do princípio de que em uma sala de 30 alunos do fundamental ou médio é comum identificarmos mais ou menos cinco alunos com tal perfil. Claro que no ensino médio o processo de exclusão por reprovação faz diminuir este índice.
            Embora para um cidadão comum possa parecer pequena esta porcentagem, professores, inspetores e equipe pedagógica sabem o quanto o cotidiano escolar é afetado pelo esforço de contornar os conflitos gerados pela interação deste grupo com o ambiente escolar. Espero que meus argumentos não causem a sensação de estar "demonizando" ou sugerindo a exclusão de certos indivíduos. Muito pelo contrário, busco aqui chamar a atenção para algo pouco assumido pelo discurso oficial ou pela retórica política ou mesmo pelo autismo de alguns pedagogos e burocratas do ensino.
            Na mesma reportagem citada acima, é revelador o comentário da supervisora pedagógica do Colégio São Bento, primeiro colocado no ranking: "_ Se o aluno quiser usar calça rasgada, brinco, piercing e cordões, certamente não estudará aqui". A possibilidade de uma escola pública adotar um regimento disciplinar, digamos, mais rigoroso é rara. A começar pela interpretação confusa e titubeante que é feita do ECA (o Estatuto da Criança e Adolescente) tanto pelos próprios conselheiros tutelares quanto pelas secretarias municipais e estaduais. Os funcionários das unidades escolares ficam desorientados sem saber que medida tomar diante dos fatos, incapazes de distinguir um ato infracional de um ato indisciplinar. A proposta de revisão da redação do ECA pode vir a corrigir isto, embora persista um desacordo profundo na interpretação dos direitos e deveres da criança e do adolescente entre os membros e entidades que participam deste debate. Juízes, promotores, conselheiros tutelares, pedagogos e assistentes sociais enxergam por prismas distintos o assunto.
            As chamadas "medidas punitivas", tão explicitamente assumidas nas particulares, são, na maioria das escolas públicas, assunto proibido ou ao menos indigesto. Reprimenda de gestores, intervenção de orientadores, impossibilidade legal e até pressão política são alguns dos argumentos citados por profissionais da educação quando indagados sobre a dificuldade de pôr em prática tais medidas. O resultado é que todo o sistema é afetado pela exaustiva e tensa situação descrita. Há argumentos que apontam este ambiente conflituoso como um dos responsáveis pelo alto índice de afastamentos (por prescrição médica, por exemplo) e faltas de professores da escola pública, índice que nas particulares é baixíssimo. Que fique claro neste ponto que nos dois ambientes (público e privado) encontram-se alunos "bagunceiros" e "que gostam de aprontar", mas não é desses que estamos falando.
            Esta heterogeneidade profunda que uma escola pública é capaz de concentrar solicita um arcabouço pedagógico que ainda é de desconhecimento da maior parte dos profissionais da educação pública. Há casos em que esta diversidade não ocorre, ou ocorre menos, como nas zonas rurais, em que o público é bem mais homogêneo do que os dos centros urbanos. Alguém pode pensar em "separar" os alunos por sua habilidade cognitiva e desempenho, para favorecer o processo de ensino-aprendizagem, mas seria ferir o que estabelece os PCN's (Parâmetros Curriculares Nacionais) criar turmas A, B e C de acordo com tais critérios de distinção. Isto nas públicas, claro.
            Outro fator relevante diz respeito aos fundamentos epistemológicos postos em prática em cada um desses ambientes. Exemplo disto é o fato de ser comum nas escolas privadas os simulados, em que se reproduz o modelo de provas de concursos (vestibular) para que o aluno se habitue e se prepare para elas. Novamente, se a escola pública tem por princípio obedecer de fato às propostas dos PCN's, ela deve variar seu modelo de ensino e avaliação, em respeito às inteligências múltiplas e à própria concepção do que seja o ensino e para que serve a educação. Neste documento do MEC está claro que não pode a escola preparar o aluno durante anos com o objetivo maior de realizar uma prova que dura poucas horas. Este é mais um ingrediente para o caldeirão dos conflitos e soluções da educação. As práticas de treinamento do ensino conteudista exigem ainda uma complexa rede de elaboração, impressão e correção de provas, assim como de uma carga horária extra, em geral sábados (por vezes, até domingo), algo para lá de assimilado pelos alunos de colégios como o São Bento. Isto implica em gastos e uma estrutura razoável de equipamentos, salas, profissionais dentre outros.
            Por fim, voltando a reportagem aqui já citada, é importante ressaltar que as medidas prováveis para a solução desses problemas já são mais que conhecidas. É o que sintetiza Ocimar Alavarse (USP) no que chama de             "três vertentes" para aprimorar o ensino público: "injeção de recursos (incluindo melhoria salarial dos professores), reforma física e organizacional das escolas e melhoria da formação dos professores". Como se vê, nada impossível. Mas os motivos para sua não realização já são assunto para outro momento.
            
AUTORIA: Fábio Elionar do Carmo Souza.
LINQUES: O Globo

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