Este texto, de Jaime Amparo Alves, faz uma ótima exposição da essência do jornalismo na sociedade burguesa, que é algo distinto da falsa ideia de entidade independente e fiscalizadora do espaço público. De acordo com o autor, a imprensa é "democrática", sim, mas aqui a democracia é entendida como um mecanismo controlado pelas elites dominantes.
FONTE: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
Linque:
REPRODUÇÃO DO TEXTO:
JORNALISMO LOMBROSIANO
A ditadura dos mass media e a esfera pública
Por Jaime Amparo Alves em 15/05/2012 na edição 694
Não é de hoje que a revista Veja figura entre as piores
práticas do jornalismo brasileiro. As reportagens semanais da revista
são, por si só, uma aula de antijornalismo para os interessados em
conceitos básicos da ética profissional de uma categoria que representa
um dos maiores desafios à consolidação da democracia no Brasil. O
paradoxo aqui é proposital: se o jornalismo é visto como a salvaguarda
da democracia ocidental no conceito iluminista de esfera pública, na
prática é essa categoria de “homens bons” que põe um impasse ao projeto
iluminista de uma esfera pública plural onde todos os cidadãos
comungariam de igual acesso à informação, ao controle da administração
pública e em defesa do bem comum. Na modernidade capitalista, a esfera
pública midiática seria o lugar, por excelência, da defesa da liberdade
de expressão e do livre exercício da autonomia individual e ninguém
melhor do que o jornalista para assumir para si a tarefa de defesa de
tais princípios.
No seu nascedouro, a imprensa brasileira traz consigo a tradição
iluminista europeia. De Evaristo da Veiga a Carlos Larcerda, de Samuel
Wainer a Policarpo Junior, o percurso do jornalismo verde-amarelo
permite identificar tanto a defesa intransigente da “liberdade” quanto a
sua liquidação a varejo nas antessalas do poder. Falta-me competência
para fazer uma revisão historiográfica da imprensa nacional. Nelson
Werneck Sodré e Venício Lima, entre outros, têm trabalhos desvendado com
maestria os meandros do jornalismo brasileiro e os desdobramentos
práticos da relação insidiosa entre mídia e Estado.
Fascismo social
Meu objetivo aqui é bem mais modesto: quero chamar a atenção do leitor
para a “coerência” entre as práticas criminosas da revista Veja e os fundamentos iluministas do jornalismo ocidental. Isso mesmo, não há nada de contraditório entre o jornalismo criminoso de Veja
e os fundamentos iluministas do jornalismo como projeto
político-ideológico. Assim como a imprensa burguesa europeia se definiu
como o veículo das Luzes a serviço do capitalismo – em contraposição à
Idade das Trevas do período medieval –, o fazer jornalístico entre nós
nunca serviu aos interesses daqueles tidos como inferiores. Não porque
os jornalistas sejam uma espécie sem coração, mas porque a prática
jornalística em si traz um defeito de nascença: um projeto de sociedade
fundado nas hierarquias sociais e naquilo que Hans Magnus Enzensberger
chamou apropriadamente de “indústria da consciência”. O jornalismo nada
mais é do que um recorte do tempo e do espaço de acordo com os
interesses dos donos dos meios de produção da notícia e a notícia, como
Cremilda Medina tem nos lembrado, é mercadoria/commodity que expressa as relações de poder na sociedade.
Levar Roberto Civita aos tribunais e fazer a revista Veja
apodrecer nas bancas faria muito bem à democracia brasileira. Mas aí
reside o percalço político e a armadilha do nosso tempo no que diz
respeito à comunicação de massa no Brasil. A palavra “democracia” é tão
carente de sentido e empregada de maneira tão porca pelos representantes
dos mass media que a legitimidade do termo reside exatamente
na “tolerância” com as práticas criminosas cotidianas atrás das máscaras
de outro termo, a “liberdade de expressão”.
O poder dos seus representantes em redefinir a palavra “liberdade” a
partir dos seus interesses corporativos põe a mídia brasileira na
vanguarda do que poderia ser chamado de ditadura midiática. Neste
sentido, o sofisticado discurso dos seus agentes (os gatekeepers)
também coloca um desafio extra aos grupos sociais pela democratização
dos meios: ninguém em sã consciência iria se opor à liberdade de
imprensa, mas como lutar contra as práticas enraizadas em um conceito
historicamente ligado ao fascismo social no Brasil? Senão ditadores
sanguinários e radicais esquerdistas, qual outro adjetivo para
desqualificar os críticos da atividade jornalística e da concentração
dos meios de comunicação?
Campos de privilégios
Para além de Veja, jornalões como a Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S.Paulo
têm se especializado na cantilena contra qualquer controle público
sobre a atividade jornalística. O paradoxo aqui é que a crítica ao
controle externo não se sustenta quando contrastada com as relações de
subordinação interna nas redações. Roberto Civita tem controle absoluto
sobre a atividade jornalística de Policarpo Júnior, assim como Ali Kamel
tem dos seus subalternos no Jornal Nacional. Em outras
palavras, não é a ameaça à liberdade de imprensa o que tira o sono dos
“executivos” da mídia brasileira; é, sim, a ameaça à liberdade de
empresa.
As reações dos conglomerados de mídia à Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom), por exemplo, realizada durante o governo do
ex-presidente Lula da Silva, e ao Plano Nacional de Direitos Humanos, do
mesmo governo, foram sintomáticas do campo político-ideológico
representado pelos donos dos principais jornais e TVs do país.
Como têm mostrado os movimentos sociais pela democratização dos meios
de comunicação, a reação da mídia à Confecom é um retrato fiel da sua
ética da conveniência: a esfera pública tão propalada como o espaço da
sociedade civil em contraposição a um Estado autoritário não vale como
espaço para o debate de ideias e o controle social da mídia e a
liberdade de expressão é ressignificado como liberdade dos donos dos
meios de produção da notícia.
O que os movimentos sociais pela democratização da mídia precisam
considerar, no entanto, é que não há incongruência/incoerência entre a
prática jornalística em tais meios e a sua “vocação autoritária” em
banir da esfera pública as vozes dissonantes. Simplesmente, a democracia
liberal defendida em suas linhas editoriais não rima com a democracia
substantiva das ruas. Ou, para ser ainda mais direto, para as redações,
palavras como “democracia” e “liberdade” são campos estratégicos de
privilégios e de dominação.
Perguntas incômodas
Ainda assim, a relação incestuosa entre a revista Veja e a turma de Goiás tem muito a nos ensinar. Se não é segredo para ninguém que a Veja traz em seu bojo uma história de horrores que vai da Escola Base ao seu envolvimento com empresas do regime apartheid
sul-africano, e se é verdade que a revista semanal se tornou uma
especialista na criminalização dos movimentos sociais criando uma escola
própria de jornalismo lombrosiano – as capas de Veja dão
combustíveis ideológicos para o assassinato dos trabalhadores rurais,
tidos como “invasores” e “baderneiros”, legitimam a violência policial
associando agentes/protagonistas da violência urbana com “terroristas”,
sustentam as desigualdades raciais negando a existência do racismo –, há
uma série de perguntas óbvias que nem os ministérios da Justiça e das
Comunicações, nem o parlamento brasileiro farão porque seus
representantes são reféns da meia dúzia de homens do eixo Rio-São Paulo
que fariam Rupert Murdoch corarde vergonha.
Aqui vão algumas perguntas que, se respondidas, fariam bem à consolidação da democracia brasileira:
1.Ainda que limitadíssimos, a Constituição de 1988 tem
dispositivos legais de regulamentação da comunicação social no país. Os
artigos 54, 221, 222, 223 e 224 da Constituição Federal determinam os
parâmetros a serem seguidos pelos concessionários públicos de
radiodifusão. Ainda assim, os meios gozam de uma liberdade absoluta em
relação aos agentes fiscalizadores, embora os casos de violação à Carta
Magna estejam aí para qualquer um ver. Para começar: por que o
Ministério das Comunicações não cassa as outorgas de rádio e televisão
paradeputados e senadores – muitas em nome de laranjas –, uma vez que o
artigo 54 da Constituição Federal proíbe parlamentares de “serem
proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor
decorrente de contrato com pessoas jurídicas de direito público, ou nela
exercer função remunerada”?Não seria hora do Ministério Público propor a
cassação das outorgas e denunciar os órgãos governamentais de
fiscalização por omissão e cumplicidade com tais práticas?
2. O artigo 224 da CF, e posteriormente a Lei no.8389,
de 30/12/1991, instituiu o Conselho de Comunicação Social do Congresso
Nacional que, pelo menos na teoria, deveria acompanhar as decisões do
governo federal no que diz respeito às renovações ou cassações de
televisão e radiofonia. No entanto, enquanto as rádios comunitárias são
sufocadas pelas ações arbitrárias da Polícia Federal, a mídia
corporativa goza de licença operacional permanente e automática. Não há
publicização dos prazos de renovação, muito menos avaliação dos veículos
pelos parlamentares. Os poucos parlamentares que ousaram enfrentar os
conglomerados de mídia nacional caíram de joelhos, morreram só. Afinal,
alguém saberia dizer onde está o chamado Conselho de Comunicação Social,
previsto na Constituição de 1988? O que tais práticas revelam/escondem
sobre a natureza da democracia brasileira e a tirania dos meios? A 1ª
Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), deliberou pela criação
de Conselhos de Comunicação Social nos estados brasileiros e não demorou
muito para o pânico moral ser instalado nas redações dos vigias da
democracia. Não seria a hora do Congresso Nacional seguir a legislação,
ouvir a voz das ruas e regulamentar tal proposta?
3. Jornalistas não são deuses e não podem ter
salvo-conduto para cometer crimes em nome da liberdade de imprensa. A
ética no jornalismo é assunto de interesse de toda a sociedade. Por que o
Congresso Nacional cedeu à pressão das entidades patronais e engavetou o
projeto que cria o Conselho Federal de Jornalismo proposto pela própria
Fenaj? A iniciativa protegeria a categoria do assédio moral dos patrões
e colocaria o fazer jornalístico sob o controle público. Jornalistas e
sociedade ganhariam com a medida porque ela resgataria o caráter de
serviço público da atividade profissional da imprensa;
4. Na prática, são as verbas públicas que acabam
financiando os crimes cometidos pela imprensa brasileira. Os governos
estaduais e federal não apenas divulgam os produtos das estatais
brasileiras nas páginas dos grandes conglomerados como também possuem
uma tradição de publicidade governamental nos já concentrados meios de
comunicação por razões óbvias. As transferências milionárias entre o
governo do estado de São Paulo e a Editora Abril reveladas pelo portal
R7, na gestão do ex-governador José Serra, são apenas exemplo de como os
cofres públicos abastecem os projetos de fascismo social da grande
mídia. No plano federal, os contratos do Ministério da Educação com
editoras dos grupos de mídia impressa, para não falar das linhas de
crédito do BNDES a emissoras de televisão, desafiam a retórica de um
governo supostamente comprometido com o fortalecimento de canais
alternativos. Não seria a hora de usar as verbas publicitárias da
administração pública a partir de um parâmetro que privilegie o
nascimento de veículos de imprensa alternativos e de valorização da
pluralidade de ideias?
Ficção jornalística e jornalismo-ficção
O leitor poderá agora lembrar-me que minha crítica à imprensa desemboca
na justificativa das ditaduras, na censura e morte de jornalistas. Ave
Maria, mangalô três vezes! Essa não é a questão aqui. Mas... O Leviatã
que amedronta a imprensa brasileira tem pouco a ver com o Estado
autoritário, até porque foi sob a “confortável” sombra da ditadura
militar que Globo, Folha de S.Paulo e Veja, para nomear algumas, se transformaram nos atuais negócios de mídia.
Um rápido olhar nos editoriais dos principais jornais do país, às
vésperas do golpe militar de 1964, ajuda a entender como o pânico moral
dirigido pela mídia contra o governo João Goulart produziuo monstro que
mais tarde iria devorar alguns dos seus representantes. Igualmente, o
empenho das Organizações Globo, Folha de S.Paulo, Veja e Estadão
em eleger Fernando de Collor de Mello em 1989 e empenho semelhante em
tentar derrubar o presidente metalúrgico quando das denúncias do
mensalão da República, desmistifica a retórica de uma imprensa
perseguida pelos tentáculos do poder estatal, como nos quis fazer crer a
Folha de S.Paulo e a Veja em série de reportagens sobre “a vocação autoritária” do governo Lula.
A questão aqui não é minimizar/negar a brutalidade do poder autoritário
do regime militar ou do Estado Novo, mas colocar em xeque o discurso
vitimizante e cínico de uma mídia comprometida até o pescoço com o
autoritarismo estatal e o fascismo social.
Em O Triste Fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto conta a
história de um funcionário público ultranacionalista, sonhador, que aos
poucos perde o encanto com o seu país e a sua gente. Do ufanismo pelo
Brasil e da adoração pelo presidente Floriano Peixoto, resta apenas um
Policarpo desiludido com a administração pública, chocado com o
autoritarismo do Estado, deserdado em um asilo e, finalmente, executado
pelas ordens diretas do presidente. Não é esse o fim que queremos para o
outro Policarpo – o editor da sucursal de Brasília da revista Veja
– embora fosse uma demonstração de apreço pela democracia se o
Ministério Público levasse ambos, o jornalista e seu patrão Roberto
Civita, aos tribunais.
Ambos, Policarpo Quaresma (ficção jornalística) e Policarpo Júnior
(jornalismo-ficção) são, no entanto, caricaturas de projetos
autoritários que, no caso do jornalismo, se convencionou chamar pelo
pomposo nome de esfera pública midiática. O triste fim de ambos
Policarpos poderia ajudar aqueles(as) de nós, jornalistas, comprometidos
com um outro projeto de sociedade a aprofundarmos a crise do já
moribundo jornalismo brasileiro a ponto de tornarmos sua legitimidade
nula e as relações de classe nas redações insustentáveis. Isso
implicaria deixarmos a arrogância de lado e reconhecermos o horroroso
papel que ocupamos nas mediações entre os interesses dos patrões e o
interesse dos grupos sociais subalternizados. De que lado estamos? Aí,
na crise sistêmica de credibilidade, e na morte do jornalismo tal qual
concebido até aqui, pode residir a esperança de uma prática jornalística
para a justiça e a paz.
***
[Jaime Amparo Alves é jornalista e doutor em Antropologia Social pela
Universidade do Texas, em Austin, e assessor de movimentos sociais em
São Paulo]
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