28 de novembro de 2012

CONTO "O TRIÂNGULO"

O TRIÂNGULO

1.
            A primeira coisa que Piolho quis quando acordou foi beber uma Coca-Cola bem gelada. A garganta estava seca, a cabeça tonta, a sensação de cansaço era enorme e ele não fazia ideia de quanto tempo dormira. O quarto de Tranquilo era um cafofo dos piores, só chão, janela e umas caixas de papelão com um monte de traste.
            Pegou uma garrafa de refrigerante com um líquido dentro e tentou beber, mas quando sentiu o cheiro percebeu que aquilo era o mictório de Tranquilo e jogou aquela porcaria toda no chão, irritado. Deu um suspiro profundo e tentou organizar as ideias.
            Precisava beber alguma coisa... e depois?
            Demorou alguns segundos e pensou em Tatinha. Aquela sacana tava achando que ele era palhaço e espalhando nas quebradas que ele não era mais homem, que tava desgostando da coisa. Vê se pode!? Que vacilona.
            Lembrou ainda de Tranquilo e da grana que ficou devendo pra ele. Onde iria arrumar cinquenta paus? Ele nem podia pensar em procurar sua mãe porque quando ela o via logo abria o berreiro e ficava pedindo ajuda ao genro safado, aquele policial militar sem vergonha e covarde. Desgraçados.
            Depois que começou a usar pedra, as coisas mudaram. Antes era só bagulho, pó e birita, mas agora ele só pensava na porcaria da pedra. Mas onde ia arrumar uma grana? Se pelo menos tivesse um ferro arrumado pra descolar alguma coisa... aí o pessoal ia ver que ele não era otário coisa nenhuma, que sabia meter uma parada sinistra. Mas na porcaria do cafofo só tinha uma faca de serrinha velha pra cacete. Merda!
            Sentindo-se um pouco mais lúcido pensou em sair dali e beber alguma coisa, mas antes precisava urinar. Usou outra garrafa e deixou-a cheia. Colocou a chave no buraco da parede e saiu para a rua. Já era noite e ele pensou de novo na safada da Tatinha. Desgraçada!
            Com a cabeça pulsando se embrenhou na escuridão e foi em direção ao centro. Uns trinta minutos de caminhada e em breve estaria no meio da malucada e iria tentar descolar alguma coisa: uma pedra, grana, uma atividade qualquer pra descolar o dinheiro do parceiro ou de repente fazer uma média com a fofoqueira da Tatinha e provar pra ela que ele era homem pra caramba, mais homem do que esse bando de vacilão que fica fazendo besteira na área.
            No meio do caminho para o centro foi que ele avistou o carro parado com a luz acesa dentro. Algum mané estava dando mole e uma oportunidade dessas a gente não desperdiça. Tirou a mão direita do bolso, que apertava insistentemente o cachimbo e pegou a faca de serrinha. Seus dentes começaram a ranger.

2.
            O mundo pode não parecer chato, mas Ângela sabia a verdade. E pior, ele não era só chato, mas sufocante, torturante e injusto. Desde que percebera quem era, desde que saíra do casulo que a aprisionara por tanto tempo, imaginava que a vida seria mais doce e suportável. Achava que do seu nascimento até aquele momento o que havia vivido fora uma provação, uma espécie de teste transcendente que deveria suportar e vencer para merecer um dia viver em paz... e amar. Mas amar mesmo, amar de verdade como sempre sonhara. Amar e poder se entregar sem fingimento e sem culpa.
            Foi quando Darci apareceu em sua vida. Foi quando percebeu que o casulo se rompera e o mundo castanho e áspero em que vivia se abria e se transformava ao seu redor. E ele era rico, lindo, colorido, perfumado.
            Mas não foi fácil romper a crosta e encarar o mundo novo que se descortinara em torno de si. Junto com a beleza que súbito lhe fora ofertada, havia os perigos e as ameaças daqueles que eram a favor da fealdade, que se irritavam em saber que outros sorriam e eram felizes. Não foi fácil convencer essas pessoas que ela e Darci só queriam um lugar, um momento e um pouco de paz para viverem felizes.
            No início até que foi possível. Darci era paciente, sensível, doce. Viveram dias tranquilos e ardentes, dias em que o mundo parecia um paraíso de cores, sons, texturas e paixão.
            Foi quando o mal-estar veio. A soma de pequenas coisas foi se tornando cada vez mais opressora e se avolumando até asfixiar completamente o corpo e a alma. De início olhares e sussurros começaram a anunciar que o pior viria. E veio. Insinuações que se transformaram em ofensas e ameaças. Parecia que o amor do casal afrontava a falta de ternura dos que o rodeavam. Ângela suportou tudo com bravura. Recém-saída do casulo ainda se lembrava bem do quanto lá era pior do que qualquer outra coisa. Iria resistir o quanto fosse necessário. Mas Darci não foi tão forte assim. A insegurança, o medo e a angústia penetraram tão profundamente em seu espírito que decidiu afastar-se. E pior, sem nada explicar, sem se despedir, sem dar uma chance para um amor que até então parecia indestrutível.
            As últimas duas semanas de abandono e solidão foram as mais terríveis de toda a sua existência. Cada minuto no apartamento caía como uma gota de ácido sob a pele fresca de um recém-nascido. As lembranças espalhadas pelos cômodos eram como um gás letal que contaminava a memória e a própria existência. Se continuasse assim, seu próximo passo seria voltar para sua prisão de sempre. Mas isso nunca! – pensava decididamente.
            Naquela manhã tomara a decisão. Escreveu cartas para a mãe, para sua melhor amiga e para Darci. Sempre fora organizada. Foi à farmácia, depois ao mercado. Em casa ficou em silêncio, com suas pílulas e a garrafa de vodka. O casulo parecia que já começara a se recompor. Depois saiu.
            Os faróis tremiam e lançavam fitas luminosas que se embaralhavam e faziam a estrada desaparecer. Já entorpecida e trêmula parou o carro no primeiro acostamento que encontrara, em um lugar ermo da cidade. Foi quando escutou alguém gritando:
            - Dá a chave aí, ô vacilona!

3.
            Entre os amigos de boleia, Pedro Eustáquio da Silva é conhecido como Pedrão. Com seu metro e oitenta adornado por braços fortes, uma barriga proeminente e uma cara enorme ampliada por barba volumosa e desgrenhada, o aumentativo realmente fazia mais jus a sua pessoa do que o contido e severo Pedro.
            Embora sua fama de valente e bom de braço seja notória nos bares e inferninhos ao longo das rodovias que atravessa há vinte anos, de norte a sul, seu traço mais marcante, e que faz dele uma companhia a que todos querem se achegar, é o seu humor. Bom humor é bom ressaltar. As piadas e gracejos contados por sua voz de Pavarotti levemente enrouquecida sempre fazem a alegria na roda de amigos.
            Hoje, especialmente, Pedrão está que não cabe em si: acabou de quitar a prestação de seu caminhão e agora é só alegria. Foram três anos apertados, de sol a sol, rodando com o olho arregalado, a estrada chapada, as mãos anestesiadas sobre o volante depois de dias de jornada. Mas agora a propriedade era realmente sua, podia vender, trocar, ficar parado, que se dane, agora não tinha mais a boleta mensal apontando o dedo rijo e ameaçador para ele. Três anos sem poder pensar em outra coisa senão na bendita estrada, nas cargas e no lucro do frete. Sem poder adoecer, passear com a família, fazer média com os biscates. Três anos.
            Agora não. Agora é diferente. Agora é diminuir o ritmo, curtir a vida, a família, os amigos. Trabalhar, sim, mas igual gente. Hoje mesmo, assim que chegar no pátio é só descarregar e ir com a rapaziada para o bar da Gringa comemorar.
            O trucado deslizava suave pela estrada, o volante parecia mais macio do que de costume. A cabeça de Pedrão parecia não ver os carros a sua frente, era como se já estivesse com as meninas da Gringa ao seu redor, abraçadas com ele, rindo e falando em seu ouvido.
            O poderoso motor fazia o caminhão avançar imponente. O carro que vinha em direção contrária era muito menor, mais leve e frágil do que o monstruoso três-eixos. Dentro do carro a motorista mantinha as duas mãos sobre o volante, olhando para frente, imobilizada, a boca semiaberta e os olhos marejados pensando em alguém longe dali. O carona gritava com ela, gesticulava e apontava algo pontiagudo para o seu rosto. Ela ignorava-o friamente. Pedrão sequer percebeu a súbita guinada que o carro deu em direção ao seu para-choque mergulhando sob suas rodas, levantando-o da estrada e tombando o gigante de oito rodas totalmente carregado. Sons terríveis de aço, asfalto e carne humana em colisão misturavam-se com os estilhaços de vidro, plástico, fumaça e fogo. Houve muito barulho e ao mesmo tempo um silêncio lancinante e etéreo. Os sorrisos das meninas, seus lábios e dentes, foram se apagando junto com as luzes do bar e com o brilho da estrada e da noite sem lua. 
 
(por Fábio Elionar)

Um comentário:

  1. Caraca, bicho! Dolorido esse. Li numa tacada só. Muito bom. Veja o meu aí: https://skynerd.com.br/perfil/Ganso/post/351225-a-aranha-conto

    Abraço.

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