Microrresenha para lá de
subjetiva sobre o filme de Von Trier ou Apreciações sobre a teoria da
narrativa.
Assisti ontem ao filme Melancolia
(2011) e a sensação geral que me ficou foi a de que o filme é bonito e
impactante, o elenco é competente e estrelado, o roteiro é interessante, mas o
resultado final é que a pretensão e a artificialidade pesam mais (e
negativamente) do que suas virtudes.
Existem filmes (e livros também)
que parecem ser feitos para agradar a crítica, de tal modo que o ritmo, as
imagens, as cenas vão surgindo como se já houvesse ali uma metáfora pronta,
indicações explícitas dos subtextos, dos níveis de profundidade da obra. É uma
espécie de obra aberta invertida. Em vez de o espectador (ou leitor) ir em
busca das conotações da obra, a própria obra já lhe dá de bandeja todas suas
possíveis aberturas.
Dito de outro jeito, uma
narrativa é pensada a partir de situações (ações que geram reações e daí a
intriga, o conflito, o humor, o suspense etc.) que se sucedem em direção a um
desfecho. Seja o final esclarecedor ou não, é fato que em algum ponto a
narrativa acaba (ou pelo menos a narração, como gostam de distinguir os
teóricos da narrativa).
Uma narrativa também é, por sua
própria economia, sintética e excludente. Por mais que virtuosismos possam
querer contestar esta condição (como o Last Days, de Gus Van Sant, que simula
ser um filme "sem roteiro"), o que temos nesses casos é a exceção a
confirmar a regra. Daí que os personagens, o cenário, os objetos, os diálogos
não estão em um roteiro por acaso, ou por um desejo aleatório qualquer, mas são
escolhidos e ordenados (montados) para compor o resultado final do tipo de
história que se pretende contar.
Acontece que nas últimas décadas
incontáveis criadores têm se especializado em elaborar suas histórias já de
olho na crítica que sairá nos jornais, revistas ou artigos acadêmicos. A
história, então, deixa de fluir em sua naturalidade lógica e passa a ser
remontada para atender a leitura dos críticos. E dá-lhe simbologia forçada.
Em Melancolia, o que me ficou foi
isso. O casamento pomposo e decepcionante, a noiva em crise existencial, os
pais opostos em tudo, o campo de golfe, os cavalos belos e viris, os livros de
arte, o filho que não fala, as irmãs antagônicas que se amam, o
marido-macho-racional-controlador, o choque dos planetas, o privilégio do
telescópio (séc. XVII) sobre a internet (séc. XX), a remissão ao matriarcado
tribal, tudo, tudo está ali para revestir de profundidade forjada um roteiro de
cinema.
Do ponto de vista estrutural, Melancolia
(2011) é exatamente igual a Cloverfield, um filme-catástrofe do gênero
"câmera-na-mão" realizado em 2008 (direção de Matt Reeves).
Infinitamente menos pretensioso, o enredo de Cloverfield antecipa as técnicas
narrativas de Melancolia: o evento apocalíptico é antecedido por uma longa
narração de uma situação banal, mostrada em tom documental, avesso às técnicas
do cinema espetacular. O efeito disto é óbvio: o espectador é projetado para um
universo "real", de pessoas "normais", de situação
cotidiana (a festa de despedida em um, um casamento no outro). Quando o evento
improvável se dá (a aparição de um monstro ou uma catástrofe planetária), fica
a sensação de que aquilo é realmente factível. O efeito de verossimilhança se
dá pela manipulação consciente da forma (o tom documental), que reveste o
conteúdo fantástico de banalidade cotidiana.
Mesmo em sua despretensão,
Cloverfield permite a um crítico agudo a elaboração de profundas metáforas
analíticas, uma vez que a reconstrução de um texto outro e complementar ao
texto base é característica do processo de interpretação. Mas no filme de Matt
Reeves os elementos do enredo estão lá por uma lógica da economia narrativa e
não para forjar um alto nível de reflexão filosófica com base na autoassumida sofisticação
do Velho Mundo.
Não é o desequilíbrio entre o
elenco principal, em que Charlotte Gainsbourg sufoca os outros (grandes)
atores, que gera o descompasso do filme. Não são sua estética e ritmo “europeus”,
não são suas incontáveis incongruências. Este mal estar (subjetivo, claro) que
me ficou se deve muito mais ao fato de o filme propor desde o início uma
naturalidade e uma verossimilhança do banal que são atropeladas pela
pretensiosa engenharia de seu criador.
Ficha técnica do filme: clique aqui (Adoro Cinema)
Nenhum comentário:
Postar um comentário