15 de outubro de 2011

O CÍRCULO

O homem de preto avançou sobre o cadáver tombado no beco e ficou olhando alguns instantes até ter certeza de  que o corpo não mais se movia. Havia uma lua, sim, sobre isso tudo, e era cheia, pesadamente prateada. Para o silêncio de onde veio, o homem de negro voltou.
Em certo momento a moça veio passando, mas isto já era às seis horas da manhã, quando ela se dirigia ao ponto de ônibus a caminho do trabalho, e viu o corpo, viu o sangue e os furos na roupa do morto. Viu as pegadas de um vermelho-quase-preto pegajoso se afastando em direção ao beco e ficando disformes e apagadas quanto mais se distanciavam do corpo. Era como se o sangue que estivera contido na embalagem de carne não quisesse se afastar e se agarrasse ao asfalto encardido com certo desespero.
E a mulher estancou.
Ela não saberia dizer quanto tempo ficou ali, olhando a cena, menos ainda saberia dizer o que sentiu ou pensou. Ela só sabe que a imagem do corpo-sangue-asfalto imprimiu-se de tal forma em sua memória que, de imediato, percebeu que jamais conseguiria retirar dali esta cena esculpida em vermelho escuro.
Chega uma hora em que é preciso se afastar, mesmo não havendo vontade própria, ou desejo declarado. E ela se afastou.
Uma hora depois, sacolejando no segundo ônibus, passando por entre as fachadas estridentes das lojas do centro, ainda continuava enxergando mais a cena no beco do que a arquitetura e as pessoas que infestavam o centro da cidade. Aquela multidão toda que se espalhava desordenadamente em volta do ônibus era como se não existisse. Ou então, era como... como se todas as pessoas que passassem em torno de seu campo de visão confluíssem e se introjetassem no corpo caído no beco por meio das fendas abertas a golpe de faca e que, parecia, não cicatrizariam nunca. Do mesmo, modo, sentia-se realmente e desesperadamente solitária, triste e aflitamente solitária. Sozinha no ônibus-ilha, parecia lhe faltar apenas os coqueiros-clichês das piadas de náufrago. Foi quando percebeu que a imagem retida na memória começara a causar-lhe dor. Chorou.
Na lanchonete em que trabalhava há dois anos, a vida passava como se cumprisse um contrato em que estivesse determinado que nada poderia fugir da normalidade. A sequência de ações se repetiam como em um filme colocado para recomeçar sempre que chegasse ao fim. Mas não naquele dia.
Atender aos clientes e fazer as obrigações rotineiras adquiriu um novo sentido. Olhava para cada pessoa e parecia querer alertá-las de que aquela seria a última vez, pois a vida acaba quando menos se espera. E pode ser num beco sombrio, longe de tudo e de todos.
Nunca havia pensado que espremer uma laranja era como retirar de dentro dela toda a história vivida pela fruta desde o desabrochar em flor. E tremia sem poder dizer a ninguém o que sentia, pois não queria parecer enlouquecida para pessoas que ainda continuavam a cumprir o contrato com a rotina. 
Havia diante dela dois mundos, um era sólido, feito de pessoas, mesas, talheres e cores difusas. Através deste, havia um mundo transparente que se fazia mais real e presente que o outro. Em um, via uma faca e copos, e na sombra da faca e dos copos percebia a agudeza do corte e a violência do vidro. 
Além disso havia os cheiros. Antes ignorados, a fritura, os condimentos e os produtos de limpeza adquiriam uma existência quase física de tão opressora. Seu estômago chegara a revirar sob o efeito da nauseante avalanche de odores quase visíveis.
E sempre a imagem do corte, do sangue e da vida escapando pelos orifícios abertos a contrapelo.
O dia passou, parecia que não iria acabar nunca, mas passou. E se a experiência sufocante das horas de trabalho lhe pareceram insuportáveis, a chegada da noite e suas sombras foram pior, muito mais assustadoras. A escuridão e as manchas negras nos pontos cegos, sob marquises, entre grades e árvores, tinham volume e era possível tocá-las e empurrá-las com as mãos trêmulas e frias.
Gostaria muito que houvesse um mar de lâmpadas acesas e que cada pessoa brilhasse como uma tela de TV, para que pudesse desfazer o nó na garganta que a impedia de respirar, mas por onde mirasse só havia a escuridão.
Quando olhou para o lado, foi obrigada a parar. Lá estava ele, o beco da manhã, agora mais severo e ameaçador. O beco com sua entrada mas cujo fim parecia não existir, embaralhado pelas trevas que pareciam nascer ali. Talvez fosse mesmo isso... descobrira sem querer a origem das sombras, o lugar de onde elas surgiam e se espalhavam pelo mundo afora.
Não havia nada ali, ao menos parecia não haver. Só o vazio do corpo, retirado ainda há pouco e levado para seu destino certo. Depois da ausência do morto o beco se afundava em manchas indistintas.
Foi então que ela avançou. Passo após passo, lentamente foi penetrando a escuridão e sentindo a pele gelar sob o peso do ar sombrio. 
Passou pela última pegada pintada com restos de sangue e olhou em direção ao nada. E dentro dele viu um homem de preto. Quieto, segurava com firmeza uma faca recém usada. Finalmente respirou.

5 comentários:

  1. Gostei.Ficção tirada do mundo real é sempre apetecível. Do meio para o final, quando a realidade cotidiana, aparentemente banal ,mas com seus fenômenos próprios, sua inevitável tecitura explodindo de forma lancinante sob a vidência atormentada da mulher, trouxe uma carga a mais de plausibilidade à narrativa, e me fez vagamente lembrar de "A náusea".
    ...Pecadilhos: 1. há um excesso de termos compostos desnecessário: "Vermelho-quase-preto","corpo-sangue-asfalto', "ônibus-ilha" (2x)e "coqueiros-clichês". No romance tais construções são diluídas pela dimensão da obra e aparecem como devem aparecer, possibilidades magistrais da escrita, mas nas short-stories, não, ficam muito aglutinadas e deixam o texto deselegante; 2. "cicratrizaram", erres a mais no vocábulo(sem dano algum para quem é ledor) e "pelo mundo à fora", escrito equivocadamente, já que não há nenhum "dentro" visível em oposição como justificativa.

    Eleandro Madureira Carpaux
    Crítico literário e linguista.

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  2. Valeu o comentário. O pecadilho 1 é um caso a pensar, mas de imediato prefiro deixar como está; o 2 foi descuido; o 3 não entendi a ressalva.

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  3. Rodegheri4/11/11 21:42

    Gostei muito da idéia. A parte que mais mexeu comigo foi quando ela se sentia com vontade de avisar a todos que eles poderiam morrer a qualquer momento.

    Muito legal que você tomou ânimo de começar a escrever ficção. Acho que o principal é começar, depois a tendência é só ficar cada vez mais "fluente". Não pare mais. Eu sempre quero começar e nunca faço isso..

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  4. Anônimo3/3/12 05:58

    Very hard man!!!!HQ e Grafic novel juntas!!!!!

    Cotia

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  5. Grande Fabio! Que grata surpresa ler um conto seu. Mais pela sua costumeira "preguiça" do que por qualquer outra motivação (ou des). Um conto urbano, curto, e nem por isso menos rico. Gosto da idéia de ser um corpo o agente motivador de tanta reflexão de um personagem. A morte levando o outrora distraído a questionar a vida, o corpo caído e inerte a dar-lhe a exata dimensão de sua mobilidade, de suas possibilidades, etc. Gostei muito meu amigo e irmão em armas! Desde já aguardo suas futuras investidas...
    Fred Fernandes
    Escritor bissexto (e preguiçoso)

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