RESUMO: o texto abaixo é uma resenha do livro Emoções Selvagens, da poeta Eliane de Lacerda. O lançamento do livro ocorreu no dia 23 de setembro, na livraria Veredas (Volta Redonda - RJ).
Gosto
Pelas Palavras: uma leitura do livro Emoções Selvagens
Emoções
Selvagens é o quinto livro da poeta Eliane de Lacerda. Se considerarmos que a
produção da poesia local tem vários fatores que forçam seu encolhimento, uma
vez que se está fora do eixo Rio-São Paulo e distante das editoras e dos
formadores de opinião, a publicação de cinco livros por uma autora de Volta
Redonda é, por si só, um fato pouco comum e bastante louvável.
O
livro é composto por 50 poemas e 33 crônicas. Além de sua produção em versos,
agora a autora trilha os caminhos da prosa (por meio do gênero crônica), e
nelas se percebe a presença dos temas e da sensibilidade recorrentes na obra da
poeta. Mas que características seriam essas? Quais são as marcas da poética de
Eliane de Lacerda?
Ora,
uma poética, qualquer uma, se faz pela recorrência de certas marcas observadas
nas formas e nos temas que compõem o conjunto. No caso de Lacerda, uma
característica que salta aos olhos do leitor é a presença marcante de uma poética
que se poderia classificar de confessional,
isto é, uma escrita literária que aponta insistentemente para sua
referencialidade, no caso, para os aspectos biográficos, para a pessoa da
autora. O lirismo é, por essência, um discurso carregado de subjetividade, mas
o poeta, como nos lembra Fernando Pessoa, é um exímio fingidor, inventa tantas
vozes e situações que o leitor experiente não espera dele um discurso de
verdade histórica e biográfica, mas de verdade estética, artística. O
confessionalismo de Lacerda é percebido na onipresença de uma voz poética
feminina cujo lirismo é acentuado e pontuado por alusões a fatos (e paixões,
sentimentos, pensamentos) que parecem querer nos recordar a todo instante que
há uma pessoa ali cuja vida é a matéria bruta de todas as imagens que vão sendo
construídas. Daí que o eu lírico constantemente afirma que escreve “porque amo
as palavras / sem grandes observações e ostentações / Escrevo para mim” (ainda
o Alma de Poeta), ou então em passagens como esta: “Minhas poesias / são
simples poesias... não há ostentação em expressões / não há preocupação com
verdadeiros amores! São revelações de / uma vida / de alguns momentos de
aventuras curtidas” (Minhas Poesias). Mas lembremos do aviso do poeta
português, pois esta afirmação de uma poesia que é pura transposição e
confissão de fatos vividos é contestada em outras partes, quando se diz que “As
palavras sufocam os sentimentos / desviam seus caminhos sua translucidez”
(Palavras) ou então nesta passagem que serve como testemunho do valor da
palavra poética: “está-se dizendo do mágico dom / de, com...pequenas palavras /
envolver os sentidos de alguém calado / No mais louco desejo de ser (...)”
(Além da Palavras).
Junto
a esse confessionalismo, em que o eu lírico se quer colado à figura da autora,
nota-se também uma sensibilidade acentuada, um viver o mundo que é muito mais
um “sentir” o mundo, experimentá-lo, absorvê-lo, da epiderme à alma. A voz que
fala nos poemas é uma voz sem amarras, sem falsos pudores. É uma voz que não
hesita em revelar-se, em desnudar-se, em oferecer-se ao outro. Disso deriva uma
outra característica muito recorrente, que é a sensualidade peculiar da poética de Eliane de Lacerda. A
sensualidade aqui deve ser entendida no valor etimológico da palavra, ou seja,
como aquilo que é relativo aos sentidos, às sensações. Daí que os versos são
carregados de imagens que apontam para a visão, a audição, o tato, mas,
principalmente, para o olfato e o paladar. Estes últimos sentidos ocupam papel
de destaque não só neste Emoções Selvagens, mas em todos os seus antecessores.
O paladar é um sentido da “boca”, e esta palavra é cara à poética lacerdiana,
assim como seus pares “beijar”, “lamber”, “morder”. O eu procura constantemente
o contato com “Todas as bocas / Famintas / com cheiro de carne e gosto de uva”
(Beijar, beijar, beijar). Em outros momentos o gosto é de chocolate, ou
alecrim, ou hortelã. A boca é carne e contato físico, mas é dali que saem as
palavras, que é verbo e transcendência.
Chevalier
e Gheerbrant, em seu Dicionário de Símbolos, explicam que a boca é a “abertura
por onde passam o sopro, a palavra e o alimento, a boca é o símbolo da força
criadora e (...) da insuflação da alma.” Mas lembram também que esta mesma
“força capaz de construir, de dar alma ou vida, de ordenar (...) é igualmente
capaz de destruir, de matar, de confundir (...): a boca derruba tão depressa
quanto edifica seus castelos de palavras”. O céu e o inferno, o dentro e o
fora, ou seja, as contradições e ambiguidades se espalham em toda a obra de
Lacerda, seja em forma de desejo e ausência, ou de vida e morte, de um eu que
busca um mundo que parece não lhe compreender, de um corpo à procura de algo
mais que a indesejada solidão. Esta sensualidade do olfato e do paladar contagia
a leitura dos versos e tem uma força sinestésica que se transforma em
assinatura própria, aquilo que se costuma chamar também de “estilo”.
Os
cinquenta poemas deste Emoções Selvagens revelam um caráter que, se não se pode
dizer que seja novo, pelo menos, funciona como uma marca distintiva em relação
aos outros quatro livros da autora. Diríamos que este é um livro “outonal”.
Se
nos livros anteriores o amor, a paixão, o calor, o desejo são elementos solares
constantemente presentes, neste, é a vez de imagens lunares aparecerem com mais
frequência. Lembramos que não estamos afirmando que os temas mudaram, o que
mudou foi a intensidade, frequência e preponderância com que os temas aparecem
agora. Por isso argumentamos que o resultado geral do conjunto agora é mais
outonal. A morte, a solidão, o frio, a ausência, a descrença estão soturnamente
presentes e diríamos que a paixão e o desejo, que predominavam, deram lugar à
melancolia e à desesperança. Um dos poemas mais contundentes e impactantes do
livro é Engano, e serve bem para ilustrar este caráter outonal de Emoções
Selvagens: “Tive grandes emoções sem nunca tê-las sentido / Fingi para todos / E
enganei-me também”.
É
possível ainda notar uma preocupação em se fazer uma espécie de balanço de
vida, ou seja, pesar e julgar o que foi a vida e o que é o viver. São vários os
momentos em que o eu poético se questiona sobre isto, para concluir que muito
se ganhou, mas muito também se perdeu. Este tom de perspectiva é reforçado pela
presença de alguns poemas de livros anteriores (como, por exemplo, Além das
Palavras, Retalho da Sociedade, o ótimo Corrida Inevitável, O Funeral dentre
outros).
Em linhas gerais,
observamos que a poesia de Eliane de Lacerda mantém uma série de elementos,
como a preferência por formas livres e por um verso de ritmo moderno, continua
o tom confessional, o lirismo personalista, mas sua dicção está agora mais
madura, seus temas e reflexões mais crepusculares. Este quinto livro, por fim,
é a prova de que a obra da autora é uma das mais profícuas e consistentes da
nossa literatura local.
(Fábio
Elionar do C. Souza, setembro de 2013)
Fábio Elionar do C. Souza é natural de Volta Redonda, graduado em Letras e com Mestrado em Literatura Brasileira pela UFF-Niterói. Professor da rede pública e do ensino superior desenvolve pesquisa sobra a produção da poesia local (Volta Redonda) desde 2007, tendo orientado três Trabalhos de Conclusão de Curso sobre poetas da região.
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