24 de setembro de 2013

GOSTO PELAS PALAVRAS

RESUMO: o texto abaixo é uma resenha do livro Emoções Selvagens, da poeta Eliane de Lacerda. O lançamento do livro ocorreu no dia 23 de setembro, na livraria Veredas (Volta Redonda - RJ).

Gosto Pelas Palavras: uma leitura do livro Emoções Selvagens

            Emoções Selvagens é o quinto livro da poeta Eliane de Lacerda. Se considerarmos que a produção da poesia local tem vários fatores que forçam seu encolhimento, uma vez que se está fora do eixo Rio-São Paulo e distante das editoras e dos formadores de opinião, a publicação de cinco livros por uma autora de Volta Redonda é, por si só, um fato pouco comum e bastante louvável.
           
Não é difícil entender o porquê disso. Eliane de Lacerda é uma pessoa para quem a palavra, a literatura, a poesia são elementos vitais, são parte inseparável de sua vida, de sua sensibilidade. Como os versos de Alma do Poeta afirmam, “Escrevo porque as palavras atropelam-se em minha mente tenho / tonturas / vertigem alfabética, sou simples e poeta”. Esta “vertigem das palavras” é a pista para entender esta produção tão vasta.
            O livro é composto por 50 poemas e 33 crônicas. Além de sua produção em versos, agora a autora trilha os caminhos da prosa (por meio do gênero crônica), e nelas se percebe a presença dos temas e da sensibilidade recorrentes na obra da poeta. Mas que características seriam essas? Quais são as marcas da poética de Eliane de Lacerda?

            Ora, uma poética, qualquer uma, se faz pela recorrência de certas marcas observadas nas formas e nos temas que compõem o conjunto. No caso de Lacerda, uma característica que salta aos olhos do leitor é a presença marcante de uma poética que se poderia classificar de confessional, isto é, uma escrita literária que aponta insistentemente para sua referencialidade, no caso, para os aspectos biográficos, para a pessoa da autora. O lirismo é, por essência, um discurso carregado de subjetividade, mas o poeta, como nos lembra Fernando Pessoa, é um exímio fingidor, inventa tantas vozes e situações que o leitor experiente não espera dele um discurso de verdade histórica e biográfica, mas de verdade estética, artística. O confessionalismo de Lacerda é percebido na onipresença de uma voz poética feminina cujo lirismo é acentuado e pontuado por alusões a fatos (e paixões, sentimentos, pensamentos) que parecem querer nos recordar a todo instante que há uma pessoa ali cuja vida é a matéria bruta de todas as imagens que vão sendo construídas. Daí que o eu lírico constantemente afirma que escreve “porque amo as palavras / sem grandes observações e ostentações / Escrevo para mim” (ainda o Alma de Poeta), ou então em passagens como esta: “Minhas poesias / são simples poesias... não há ostentação em expressões / não há preocupação com verdadeiros amores! São revelações de / uma vida / de alguns momentos de aventuras curtidas” (Minhas Poesias). Mas lembremos do aviso do poeta português, pois esta afirmação de uma poesia que é pura transposição e confissão de fatos vividos é contestada em outras partes, quando se diz que “As palavras sufocam os sentimentos / desviam seus caminhos sua translucidez” (Palavras) ou então nesta passagem que serve como testemunho do valor da palavra poética: “está-se dizendo do mágico dom / de, com...pequenas palavras / envolver os sentidos de alguém calado / No mais louco desejo de ser (...)” (Além da Palavras).
            Junto a esse confessionalismo, em que o eu lírico se quer colado à figura da autora, nota-se também uma sensibilidade acentuada, um viver o mundo que é muito mais um “sentir” o mundo, experimentá-lo, absorvê-lo, da epiderme à alma. A voz que fala nos poemas é uma voz sem amarras, sem falsos pudores. É uma voz que não hesita em revelar-se, em desnudar-se, em oferecer-se ao outro. Disso deriva uma outra característica muito recorrente, que é a sensualidade peculiar da poética de Eliane de Lacerda. A sensualidade aqui deve ser entendida no valor etimológico da palavra, ou seja, como aquilo que é relativo aos sentidos, às sensações. Daí que os versos são carregados de imagens que apontam para a visão, a audição, o tato, mas, principalmente, para o olfato e o paladar. Estes últimos sentidos ocupam papel de destaque não só neste Emoções Selvagens, mas em todos os seus antecessores. O paladar é um sentido da “boca”, e esta palavra é cara à poética lacerdiana, assim como seus pares “beijar”, “lamber”, “morder”. O eu procura constantemente o contato com “Todas as bocas / Famintas / com cheiro de carne e gosto de uva” (Beijar, beijar, beijar). Em outros momentos o gosto é de chocolate, ou alecrim, ou hortelã. A boca é carne e contato físico, mas é dali que saem as palavras, que é verbo e transcendência.
            Chevalier e Gheerbrant, em seu Dicionário de Símbolos, explicam que a boca é a “abertura por onde passam o sopro, a palavra e o alimento, a boca é o símbolo da força criadora e (...) da insuflação da alma.” Mas lembram também que esta mesma “força capaz de construir, de dar alma ou vida, de ordenar (...) é igualmente capaz de destruir, de matar, de confundir (...): a boca derruba tão depressa quanto edifica seus castelos de palavras”. O céu e o inferno, o dentro e o fora, ou seja, as contradições e ambiguidades se espalham em toda a obra de Lacerda, seja em forma de desejo e ausência, ou de vida e morte, de um eu que busca um mundo que parece não lhe compreender, de um corpo à procura de algo mais que a indesejada solidão. Esta sensualidade do olfato e do paladar contagia a leitura dos versos e tem uma força sinestésica que se transforma em assinatura própria, aquilo que se costuma chamar também de “estilo”.
            Os cinquenta poemas deste Emoções Selvagens revelam um caráter que, se não se pode dizer que seja novo, pelo menos, funciona como uma marca distintiva em relação aos outros quatro livros da autora. Diríamos que este é um livro “outonal”.
            Se nos livros anteriores o amor, a paixão, o calor, o desejo são elementos solares constantemente presentes, neste, é a vez de imagens lunares aparecerem com mais frequência. Lembramos que não estamos afirmando que os temas mudaram, o que mudou foi a intensidade, frequência e preponderância com que os temas aparecem agora. Por isso argumentamos que o resultado geral do conjunto agora é mais outonal. A morte, a solidão, o frio, a ausência, a descrença estão soturnamente presentes e diríamos que a paixão e o desejo, que predominavam, deram lugar à melancolia e à desesperança. Um dos poemas mais contundentes e impactantes do livro é Engano, e serve bem para ilustrar este caráter outonal de Emoções Selvagens: “Tive grandes emoções sem nunca tê-las sentido / Fingi para todos / E enganei-me também”.
            É possível ainda notar uma preocupação em se fazer uma espécie de balanço de vida, ou seja, pesar e julgar o que foi a vida e o que é o viver. São vários os momentos em que o eu poético se questiona sobre isto, para concluir que muito se ganhou, mas muito também se perdeu. Este tom de perspectiva é reforçado pela presença de alguns poemas de livros anteriores (como, por exemplo, Além das Palavras, Retalho da Sociedade, o ótimo Corrida Inevitável, O Funeral dentre outros).
Em linhas gerais, observamos que a poesia de Eliane de Lacerda mantém uma série de elementos, como a preferência por formas livres e por um verso de ritmo moderno, continua o tom confessional, o lirismo personalista, mas sua dicção está agora mais madura, seus temas e reflexões mais crepusculares. Este quinto livro, por fim, é a prova de que a obra da autora é uma das mais profícuas e consistentes da nossa literatura local.
  

(Fábio Elionar do C. Souza, setembro de 2013)
Fábio Elionar do C. Souza é natural de Volta Redonda, graduado em Letras e com Mestrado em Literatura Brasileira pela UFF-Niterói. Professor da rede pública e do ensino superior desenvolve pesquisa sobra a produção da poesia local (Volta Redonda) desde 2007, tendo orientado três Trabalhos de Conclusão de Curso sobre poetas da região.

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